Educação & Sociedade
Educ. Soc. vol.23 no.81 Campinas Dec. 2002
doi: 10.1590/S0101-73302002008100015
DISCIPLINAS E INTEGRAÇÃO CURRICULAR: HISTÓRIA E POLÍTICAS*
Maria Inês Marcondes**
A coletânea de textos organizada pelas professoras Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo reúne artigos elaborados por autores brasileiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Inclui também a contribuição latino-americana representada pela Argentina, Universidade de Buenos Aires, e européia, representada pelas contribuições portuguesa da Universidade do Minho e francesa do Centro de Pesquisas Históricas (CNRS) e da Escola Superior de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris).
As organizadoras são reconhecidas pesquisadoras do campo do currículo e professoras em cursos de Graduação e Pós-Graduação na UFRJ e na UERJ, respectivamente. São também membros do Grupo de Trabalho de Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANDEP).
Trata-se de uma coletânea composta por 8 artigos que têm em comum o foco no "conhecimento escolar" e sua organização nas políticas educacionais e no cotidiano das salas de aula. A intenção da obra é problematizar a relação entre integração curricular e disciplinas escolares com base na história e na política.
Os autores dos textos discutem o conhecimento escolar organizado em disciplinas (vistas ainda como indispensáveis instrumentos de sistematização de saberes e habilidades), mas não se restringindo mais aos limites disciplinares. Analisam o discurso da integração curricular que está sendo proposto e justificado por mudanças dos processos de trabalho e de organização do conhecimento no mundo globalizado. Destacam que a possível identificação nas propostas curriculares de expressões comuns àquelas utilizadas em outros momentos históricos do passado não é garantia de que os mesmos sentidos e significados se reproduzam, nem que estejam sendo perseguidas as mesmas finalidades educacionais.
A partir disso, faz-se urgente a interpretação dos discursos das atuais propostas curriculares oficiais, levando em conta a especificidade de cada um deles, assim como sua contextualização política, econômica, social e cultural. Fazer essa interpretação é uma das tarefas a que os autores dos artigos se propõem.
Trabalhar com a História do Currículo é reconstruir a história a partir de múltiplas versões, analisar documentos, estabelecendo relações e correlações no sentido de reconstruir uma rede de significados. Ao fazer essa reconstrução os autores enfrentam a tensão entre aspectos macro-sociais e as dimensões micro-referentes instituições e as salas de aula onde o currículo se materializa. Se reduzirmos a análise a um desses aspectos, corremos o risco de minimizar a complexidade do fazer curricular, defendem os autores. Reler cada um dos documentos para reconstruir o cotidiano curricular não é tarefa fácil, pois ele se apresenta complexo, difuso, difícil de captar e desvelar o que está encoberto.
A História do Currículo possibilita acompanhar a natureza das mudanças curriculares, compreendendo a gênese e o desenvolvimento de determinadas categorias que hoje estão presentes, muitas das vezes, com outros significados. Analisar políticas curriculares, tendo como pano de fundo a história do currículo, é um dos objetivos desempenhados com sucesso pela coletânea apresentada.
Com base em nossa leitura e na introdução da obra feita pelas suas organizadoras, Lopes & Macedo, fazemos um breve resumo dos textos apresentados:
O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho, "Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos", defende novas perspectivas para a pesquisa sobre a escola em História da Educação. O fenômeno da escolarização é estudado pelo autor: de uma sociedade sem escolas no início do século XIX ao início do XXI com a quase totalidade de nossas crianças na escola. Tempos, espaços, sujeitos, conhecimentos e práticas escolares são focalizados como elementos-chave dessa análise. Ao analisar a cultura escolar o autor mostra o surgimento no currículo brasileiro da seriação e da organização disciplinar e quais as suas conseqüências para a escolarização e, dessa, para a cultura social mais ampla. De acordo com o autor, "A escola vai-se constituindo, assim, não apenas no locus privilegiado da cultura e da formação humana, mas também como um grande mercado de trabalho e de consumo de inúmeros produtos da cada vez mais complexa e poderosa indústria editorial, entre outras" (p. 35).
O artigo de Dominique Juliá, "Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação", por sua vez, discute a pesquisa em história das disciplinas escolares, argumentando que esse campo de estudos deve levar em conta os objetivos associados não apenas às referidas disciplinas, mas também às práticas reais de ensino e à apropriação dos conteúdos por parte dos alunos. O autor apresenta e discute os cuidados metodológicos que os historiadores do currículo devem ter ao substituir as análises macroscópicas pelo estudo dos funcionamentos internos específicos de cada escola. Essas duas instâncias vêm se complementar, oferecendo ao pesquisador um quadro de análise mais completo e abrangente. O autor conclui dizendo que
resulta essencial relembrar que toda a história das disciplinas escolares deve, em um mesmo movimento, considerar as finalidades óbvias ou implícitas buscadas, os conteúdos de ensino e a apropriação realizada pelos alunos, tal como pode ser medida por meio de trabalhos e exercícios. Há uma interação constante entre esses três pólos que concorrem na constituição de uma disciplina e estaríamos incorrendo diretamente em graves erros se quiséssemos ignorar ou negligenciar qualquer um deles. (P. 51)
Em seu artigo Dominique Juliá abarca esses três pólos.
As organizadoras da obra, Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo, são também autoras do artigo "A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências". Nele, levantam a hipótese de que, mesmo em currículos transversais (em que a matriz do conhecimento não é disciplinar), a força dos processos de administração curricular acabaria acarretando a organização de disciplinas com finalidade de controle do trabalho docente e/ou para controle das atividades dos alunos. As autoras analisam o caso da disciplina ciências, em virtude de se tratar do exemplo de uma dessas tentativas de produzir uma integração pela via disciplinar. No artigo recorrem aos trabalhos de Ivor Goodson e Boaventura de Souza Santos, para argumentar que a disciplina escolar é diferente da disciplina científica.
Silvina Givirtz et al., no artigo intitulado "A politização do currículo de ciências nas escolas argentinas (1870-1950)", argumentam que os conteúdos de ensino em ciências foram selecionados e organizados em disciplinas de modo a buscar resolver conflitos ideológicos. No sentido de sustentar sua argumentação, apresentam dois estudos sobre as formas como determinados assuntos são introduzidos e posicionados no currículo, buscando identificar os componentes ideológicos dessa seleção e organização. As autoras tratam especificamente dos campos da astronomia e da cosmografia e das teorias da evolução. Concluem os autores que "existem relações complexas entre as ciências naturais, a instituição escolar e a política" (p. 9).
O artigo de Elizabeth Macedo, "Currículo e competência", analisa como a utilização da noção de competências vem respondendo, na teorização curricular, a novas formas de organização do saber e do trabalho na sociedade comtemporânea. A partir da análise dos documentos curriculares para a educação básica a autora identifica três inspirações principais: a tradição francesa de competência, o comportamentalismo americano das teorias de competência e as abordagens de conhecimento e mercado, que vêm dando destaque a saberes não-disciplinares. Compreendendo as políticas da elaboração curricular "como híbridos de muitas tradições em conflito", a autora defende a "necessidade de se buscar entender como se configuram os mecanismos de poder e quais as finalidades sociais de transição do currículo disciplinar para um currículo orientado por competências" (p. 9). A autora conclui o seu artigo defendendo que a centralidade na noção de competência, ainda que se utilizando variados elementos dos discursos educacionais construídos ao longo do último século e se apropriando de reivindicações do próprio campo, está alicerçada nas demandas postas à escola por um novo perfil do mercado produtivo (p. 141). O tema é instigante e a análise da autora é de extrema atualidade.
No artigo de Alice Casimiro Lopes, "Parâmetros curriculares para o ensino médio: quando a integração perde o seu potencial crítico", o foco volta-se para as atuais políticas curriculares para o ensino médio. A autora defende que o potencial crítico do discurso sobre currículo integrado encontra-se recontextualizado nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) a partir de processos de deslocalização de suas matrizes teóricas originais e de relocalização por hibridização, especialmente, com os discursos derivados das matrizes dos eficientistas sociais (o currículo por competências), associados a princípios integradores completamente distanciados de uma perspectiva crítica (p. 148).
No artigo de José Augusto Pacheco, "Área de projecto: uma componente curricular não-disciplinar", é analisada a recente reforma curricular portuguesa do ensino secundário, no que se refere às formas de organização curricular. O autor trata especificamente da área do projeto, que privilegia a interação entre escola e realidade e propõe a inversão da lógica curricular da transmissão para o questionamento. Esse artigo tem especial importância para nós, no Brasil, dado que os projetos têm sido propostos nas mais recentes reformas curriculares.
Finalizando a coletânea, o interessante artigo de Alfredo Veiga-Neto, "Espaço e currículo", focaliza algumas questões relativas à contribuição do currículo para a constituição do sujeito moderno. Na análise do autor, "é também pelo currículo que aprendemos a conferir sentidos e fazer uso do espaço e, de maneira obrigatoriamente imbricado, do tempo" (p. 11). Segue o autor defendendo a idéia de que "a integração e a transversalidade devem ser entendidas como invenções curriculares que representam novas configurações" (p. 11). O tema é abordado com originalidade.
Os estudos históricos sobre currículo transformam nosso foco de atenção colocando novos questionamentos e nos instigando a continuar a pesquisa, colaborando no desenvolvimento de outros estudos, na análise de propostas curriculares e na constante e necessária reflexão sobre as práticas escolares em diferentes níveis e contextos.
Entre os méritos da obra destacamos, em primeiro lugar, a utilização de uma linguagem clara, portanto de fácil compreensão, mesmo para os não iniciados no campo do estudo e da pesquisa sobre currículo. Em segundo lugar, o desenvolvimento de uma análise profunda utilizando autores consagrados no campo da história e da política. Dentre eles, destacamos a referência ao autor clássico na história do currículo, Ivor Goodson, que tem tentado, com sucesso, construir um arcabouço teórico para o estudo da história das disciplinas. Seu trabalho desvela o processo pelo qual determinadas áreas do conhecimento são transformadas em disciplinas escolares. Finalmente, destacamos a importante e necessária reflexão sobre temas da atualidade no contexto atual de reformas. Nosso país vive hoje em processo de implantação de várias reformas curriculares e elas têm sido apresentadas como elementos fundamentais para o alcance da melhoria da qualidade da educação dada pelos sistemas de ensino. De um modo geral elas têm sido concebidas tendo como base a visão de especialistas e de consultores internacionais, deixando em segundo plano a experiência dos seus reais implementadores – os professores dos diferentes níveis de ensino. As dificuldades de implantação e até mesmo de entendimento dessas novas propostas nos fazem analisar com maior cuidado o papel e a importância do currículo, seu discurso e sua prática em nossa realidade. Ao buscar subsídios teóricos para a análise desse quadro encontramos na coletânea de Lopes & Macedo temáticas como "parâmetros", "competências" e "projetos" analisadas nos artigos com base em autores de currículo vinculados aos paradigmas críticos e pós-críticos.
Pelas razões acima descritas, recomendo enfaticamente o livro por possibilitar um entendimento mais profundo dessas reformas, suas conseqüências na prática diária de nossas escolas e na busca de alternativas na superação dos impasses apresentados. O livro traz importantes subsídios para essa tarefa.
Por se tratar de obra de conteúdo crítico, apresenta-se como leitura indispensável para pesquisadores da área, professores da disciplina Currículo, estudantes de Pós-Graduação e de Graduação. Lembrando que a história do currículo é parte da história da educação, recomendamos também o livro para professores e pesquisadores do campo. Sua leitura será certamente enriquecedora para sua reflexões e análises.
* Resenha do livro Disciplinas e integração curricular: história e políticas, organizado por Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (Rio de Janeiro: DP&A, 2002).
** Professora do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
istória das ideias pedagógicas no Brasil (Col. Memória da Educação)
Maria Dativa de Salles Gonçalves
Membro integrante do Núcleo de Políticas, Gestão e Financiamento da Educação, no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná dativa@onda.com.br
Dermeval Saviani Autores Associados: Campinas, 2007, 492p.
O livro, que recebeu o prêmio Jabuti em 2008, na categoria Educação, constitui mais uma contribuição do professor Dermeval Saviani ao exame crítico do pensamento pedagógico brasileiro e é um fruto do amadurecimento intelectual do autor. Não se trata de simples exposição ordenada de resultados de pesquisa. É, na verdade, resultante de uma vida de intensa elaboração da teoria da educação sob perspectiva crítica, de pesquisas e reflexões geradoras de novos conhecimentos difundidos em aulas, grandes conferências, muitos livros e artigos, na trajetória desse educador.
Oferecendo uma visão de conjunto das ideias pedagógicas na história da educação brasileira ao longo de cinco séculos, o texto discute suas implicações para a teoria e a prática educativas.
As ideias pedagógicas diferem substancialmente da tradicional história do pensamento dos grandes pedagogos e, também, das educacionais, que se referem amplamente à educação. As ideias pedagógicas decorrem da análise do fenômeno educativo, na busca de explicá-lo, ou derivam de certa concepção de homem, mundo ou sociedade sob a qual é interpretado o fenômeno educativo. Segundo o autor, elas são "as ideias educacionais, não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real da educação, orientando, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa" (p.6). Como exemplo, podem ser consideradas as ideias pedagógicas dos jesuítas no Brasil, especialmente no chamado Período Heroico; estas não se definem por simples derivação da concepção religiosa (católica) do mundo, sociedade e educação. Deram origem a práticas educativas que concretizaram o necessário ajuste entre as ideias educacionais e a realidade específica da colônia brasileira. São, portanto, as ideias pedagógicas ao longo da educação brasileira, o fulcro do estudo apresentado.
O livro resultou de um acurado processo de pesquisa conduzido pelo autor, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo propósito foi compreender a "evolução do pensamento pedagógico brasileiro a partir da identificação, classificação e periodização das principais concepções educacionais (p.1-2). A investigação tomou como materiais básicos documentos escritos – livros, artigos e textos oficiais –, trabalhando com fontes primárias, no caso, documentos nos quais se encontravam as ideias pedagógicas dos principais protagonistas da educação brasileira, e fontes secundárias, como documentação bibliográfica.
Foi obtido assim um conjunto de informações de grande vulto que, no livro propriamente dito, se evidencia em cada um dos capítulos e é registrado em um total de 351 fontes diretamente referidas e utilizadas na redação do texto. Além das obras mais conhecidas de história da educação brasileira, estão presentes, no decorrer dos capítulos, numerosas referências aos estudos feitos no Brasil nos últimos 20 anos por pesquisadores do campo históricoeducativo e publicados até 2006. São livros, artigos e outros materiais, inclusive os divulgados como teses, dissertações e até monografias de cursos de pós-graduação. Esses estudos de corte analítico, que incidiram sobre temas ou momentos específicos da educação brasileira, foram trabalhados pelo autor, e, somados a muitas outras leituras, possibilitaram reflexões e interpretações substantivas e sínteses amplas, com densidade explicativa, relativas às ideias pedagógicas existentes em longos períodos da história da educação brasileira ou em algumas de suas fases. Não foi relegado, contudo, o objetivo de oferecer aos leitores parte significativa das ricas informações obtidas pela pesquisa, que se referem a cada um dos momentos da educação brasileira; são apresentados assim, cuidadosos detalhamentos, tais como biografias dos protagonistas e datas completas de eventos marcantes, para melhor esclarecer o leitor.
Como outro resultado do trabalho de pesquisa, o autor construiu uma original periodização da evolução das ideias pedagógicas no Brasil. Buscou superar tanto as divisões no tempo, cuja base é a história político-administrativa, quanto as que se cingiram principalmente ao critério da determinação econômica, no esforço de compreender com maior rigor a história da educação brasileira. Assim, ao elaborar a periodização proposta, esclarece ter partido das principais concepções de educação, guiando-se pelo movimento real das ideias pedagógicas presentes no curso da história da educação.
A Pedagogia Tradicional, nas vertentes religiosa e leiga, a Pedagogia Nova, a Pedagogia Tecnicista e a concepção pedagógica produtivista, estudadas em suas características nos trabalhos anteriores do autor, são as categorias que delimitam quatro grandes períodos, dentro dos quais se identificam as diferentes ideias pedagógicas. Cada período é subdividido em duas ou três fases, de acordo com o movimento dessas ideias no seu interior. O início e o fim de cada período foram determinados por eventos fundamentais. Assim, por exemplo, o 2º período, que vai de 1759 a 1932, e em que ocorre a "coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da Pedagogia Tradicional", tem início com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, e o término marcado pela divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
Para demonstrar que o movimento das ideias pedagógicas foi o efetivo "divisor de águas", nada mais elucidativo que a afirmação de que "o princípio da periodização tem por base a hegemonia" (p. 20). Termos como configuração, desenvolvimento, predominância, monopólio, equilíbrio, coexistência, crise e articulação, com referência às pedagogias, passam a ser utilizados nos títulos dos períodos e capítulos. Essas denominações indicam o modo pelo qual as ideias pedagógicas se apresentam em determinado momento histórico, sob a forma de uma pedagogia, ou concepção, que nasce, firma-se, predominando ou coexistindo ao lado de outra, entrando em crise e sendo substituída ou não, pois pode ser reconfigurada sob novas bases, num movimento constante. São analisadas também as chamadas ideias e correntes não hegemônicas e as pedagogias contra-hegemônicas, de "esquerda", que, em alguns períodos e fases da educação brasileira, buscaram influenciar e ainda influenciam, de algum modo, a ação educativa, especialmente em anos recentes. Na estrutura geral do livro, a história das ideias pedagógicas no Brasil é apresentada com uma divisão em quatro períodos, com suas respectivas fases, em um total de 14 capítulos.
Na introdução, o professor-pesquisador, que coordena há algum tempo o, nacionalmente reconhecido, Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" – Histedbr –, procura dar esclarecimentos sobre a perspectiva teórico-metodológica adotada, cujo princípio é o "caráter concreto do conhecimento histórico-educacional" (p.3), que, para sua efetivação, exige ser complementado por outros. São ainda examinadas questões teóricas do campo da historiografia, entre elas, a tentação relativista e a sedução pela micro-história.
Na análise de cada período há um capítulo introdutório que indica sinteticamente as linhas básicas do momento histórico determinante das ideias pedagógicas correspondentes ao espaço de tempo analisado; a ele seguem-se os capítulos que correspondem às diferentes fases examinadas. Quanto ao conteúdo dos períodos e fases, dada a sua extensão e profundidade, somente uma leitura atenta de toda a obra poderá permitir a apreciação de sua qualidade e riqueza, inclusive da beleza e pertinência das ilustrações. Alguns aspectos serão destacados aqui, mais como um estímulo, um convite ao leitor.
No 1º período (1549-1759), em que ocorre o monopólio da vertente religiosa da Pedagogia Tradicional, são de se mencionar tanto as explicações históricas, no cap 1, relativas ao atraso do desenvolvimento capitalista em Portugal, quanto, no cap. 3, a apresentação da Ratio Studiorum jesuítica em sua complexidade.
No 2º período (1759-1932), ainda sob a Pedagogia Tradicional, mas incluindo a coexistência de suas vertentes religiosa e leiga, a propalada "desertificação" educacional após a expulsão dos jesuítas é confrontada no cap. 5, seja no que se refere à melhor compreensão dos novos propósitos político-educacionais em vista da "máquina mercante", seja no que diz respeito às reformas educacionais do despotismo esclarecido e às iniciativas como o Seminário de Olinda, no Brasil. No cap. 6, um alentado estudo das ideias pedagógicas e circunstâncias em que se disseminaram no Império e início do período republicano é feito mediante análise das propostas contidas na reforma, dos métodos de ensino utilizados para expandir a precária escolarização, bem como, da nova organização das escolas. As ideias pedagógicas republicanas são vistas em seus fundamentos positivistas e laicos.
O 3º período (1932-1969) é aquele em que a Pedagogia Tradicional convive com a Pedagogia Nova e depois cede lugar a ela. Esta última predomina com ampla margem nesse intervalo de tempo. Já no final dos anos 60, a Pedagogia Tecnicista começa a articular-se. Esse movimento é descrito em quatro capítulos (7, 8, 10 e 14), com detalhamento de informações sobre as lutas político-educacionais então travadas e seus protagonistas e com o exame das questões pedagógicas que surgem. Pode ser considerado o mais abrangente.
No 4º período (1969-2001), configurase a denominada concepção produtivista, mas também são examinadas as concepções pedagógicas, as contribuições e o papel histórico de Paulo Freire "referência de uma pedagogia progressista e de esquerda" (cap. 10) e, no cap. 12, os estudos crítico-reprodutivistas em seu papel de arma teórica nos anos 70 e no seu aporte para a compreensão dos limites da ação escolar. Também são mencionados explicitamente os trabalhos mais recentes e as lutas de seus principais representantes, Bourdieu, Baudelot e Establet, contra a invasão neoliberal, na defesa da educação pública.
Para o autor, no entanto, a concepção pedagógica produtivista parece ser de fato a hegemonia das ideias e práticas pedagógicas, desde os 69 até os nossos dias, sendo que, nos impactantes anos 90, teria havido um surto eficientista em que a racionalidade econômica prevaleceu sobre a pedagógica. Aqui se faz apenas um único comentário crítico. Enquanto as análises dos três primeiros períodos, mais distantes do movimento atual, permitem uma compreensão aprofundada dos movimentos "orgânicos e conjunturais", o mesmo não parece ocorrer em relação ao 4º período, especialmente nos cap. 13 e 14. Julga-se ainda necessário, no processo de análise da história das ideias pedagógicas, aguardar um tanto mais a decantação pelo tempo das "impurezas" que impedem uma percepção mais nítida do real movimento de explicitação e prevalência de ideias. Quem sabe as ideias pedagógicas contidas nas pedagogias contra-hegemônicas possam ser mais reconhecidas, no seu alcance teórico e nas realizações práticas durante os anos 80 e posteriores, e nas esperanças depositadas no início do séc. XXI. Para isso, não só o tempo, mas também estudos, reflexões e pesquisas são imprescindíveis. De modo semelhante tornase uma exigência afinar a compreensão crítica quanto aos fundamentos e influências na prática pedagógica do chamado neoprodutivismo e suas variantes: neo-escalonovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (cap.14).
Cabe destacar ainda, no livro, a reiterada afirmativa do autor de que sua imensa tarefa de pesquisa e síntese das ideias pedagógicas no Brasil seria vã, caso os conhecimentos obtidos resultassem apenas em um relatório técnico, para especialistas, e não chegassem até as salas de aula pelos professores e diretores, e não conseguissem integrar programas escolares. Sendo assim, a obra persegue o propósito de trazer mais coerência e consistência à ação educativa, como, no dizer do autor, "um primeiro esforço no sentido de pôr ao alcance dos professores um recurso que lhes permita abordar a educação brasileira em seu conjunto, desde as origens até nossos dias" (p.18).
Pelas razões apontadas e considerando de plena justiça o prêmio recebido pelo autor, é que se pode recomendar aos educadores a leitura de mais este livro do dr. Demerval Saviani, professor e orientador de grande número de professores e pesquisadores brasileiros que estão hoje produzindo teórica e praticamente a educação no Brasil.
DISCIPLINAS E INTEGRAÇÃO CURRICULAR: HISTÓRIA E POLÍTICAS*
Maria Inês Marcondes**
A coletânea de textos organizada pelas professoras Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo reúne artigos elaborados por autores brasileiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Inclui também a contribuição latino-americana representada pela Argentina, Universidade de Buenos Aires, e européia, representada pelas contribuições portuguesa da Universidade do Minho e francesa do Centro de Pesquisas Históricas (CNRS) e da Escola Superior de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris).
As organizadoras são reconhecidas pesquisadoras do campo do currículo e professoras em cursos de Graduação e Pós-Graduação na UFRJ e na UERJ, respectivamente. São também membros do Grupo de Trabalho de Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANDEP).
Trata-se de uma coletânea composta por 8 artigos que têm em comum o foco no "conhecimento escolar" e sua organização nas políticas educacionais e no cotidiano das salas de aula. A intenção da obra é problematizar a relação entre integração curricular e disciplinas escolares com base na história e na política.
Os autores dos textos discutem o conhecimento escolar organizado em disciplinas (vistas ainda como indispensáveis instrumentos de sistematização de saberes e habilidades), mas não se restringindo mais aos limites disciplinares. Analisam o discurso da integração curricular que está sendo proposto e justificado por mudanças dos processos de trabalho e de organização do conhecimento no mundo globalizado. Destacam que a possível identificação nas propostas curriculares de expressões comuns àquelas utilizadas em outros momentos históricos do passado não é garantia de que os mesmos sentidos e significados se reproduzam, nem que estejam sendo perseguidas as mesmas finalidades educacionais.
A partir disso, faz-se urgente a interpretação dos discursos das atuais propostas curriculares oficiais, levando em conta a especificidade de cada um deles, assim como sua contextualização política, econômica, social e cultural. Fazer essa interpretação é uma das tarefas a que os autores dos artigos se propõem.
Trabalhar com a História do Currículo é reconstruir a história a partir de múltiplas versões, analisar documentos, estabelecendo relações e correlações no sentido de reconstruir uma rede de significados. Ao fazer essa reconstrução os autores enfrentam a tensão entre aspectos macro-sociais e as dimensões micro-referentes instituições e as salas de aula onde o currículo se materializa. Se reduzirmos a análise a um desses aspectos, corremos o risco de minimizar a complexidade do fazer curricular, defendem os autores. Reler cada um dos documentos para reconstruir o cotidiano curricular não é
tarefa fácil, pois ele se apresenta complexo, difuso, difícil de captar e desvelar o que está encoberto.
A História do Currículo possibilita acompanhar a natureza das mudanças curriculares, compreendendo a gênese e o desenvolvimento de determinadas categorias que hoje estão presentes, muitas das vezes, com outros significados. Analisar políticas curriculares, tendo como pano de fundo a história do currículo, é um dos objetivos desempenhados com sucesso pela coletânea apresentada.
Com base em nossa leitura e na introdução da obra feita pelas suas organizadoras, Lopes & Macedo, fazemos um breve resumo dos textos apresentados:
O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho, "Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos", defende novas perspectivas para a pesquisa sobre a escola em História da Educação. O fenômeno da escolarização é estudado pelo autor: de uma sociedade sem escolas no início do século XIX ao início do XXI com a quase totalidade de nossas crianças na escola. Tempos, espaços, sujeitos, conhecimentos e práticas escolares são focalizados como elementos-chave dessa análise. Ao analisar a cultura escolar o autor mostra o surgimento no currículo brasileiro da seriação e da organização disciplinar e quais as suas conseqüências para a escolarização e, dessa, para a cultura social mais ampla. De acordo com o autor, "A escola vai-se constituindo, assim, não apenas no locus privilegiado da cultura e da formação humana, mas também como um grande mercado de trabalho e de consumo de inúmeros produtos da cada vez mais complexa e poderosa indústria editorial, entre outras" (p. 35).
O artigo de Dominique Juliá, "Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação", por sua vez, discute a pesquisa em história das disciplinas escolares, argumentando que esse campo de estudos deve levar em conta os objetivos associados não apenas às referidas disciplinas, mas também às práticas reais de ensino e à apropriação dos conteúdos por parte dos alunos. O autor apresenta e discute os cuidados metodológicos que os historiadores do currículo devem ter ao substituir as análises macroscópicas pelo estudo dos funcionamentos internos específicos de cada escola. Essas duas instâncias vêm se complementar, oferecendo ao pesquisador um quadro de análise mais completo e abrangente. O autor conclui dizendo que
resulta essencial relembrar que toda a história das disciplinas escolares deve, em um mesmo movimento, considerar as finalidades óbvias ou implícitas buscadas, os conteúdos de ensino e a apropriação realizada pelos alunos, tal como pode ser medida por meio de trabalhos e exercícios. Há uma interação constante entre esses três pólos que concorrem na constituição de uma disciplina e estaríamos incorrendo diretamente em graves erros se quiséssemos ignorar ou negligenciar qualquer um deles. (P. 51)
Em seu artigo Dominique Juliá abarca esses três pólos.
As organizadoras da obra, Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo, são também autoras do artigo "A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências". Nele, levantam a hipótese de que, mesmo em currículos transversais (em que a matriz do conhecimento não é disciplinar), a força dos processos de administração curricular acabaria acarretando a organização de disciplinas com finalidade de controle do trabalho docente e/ou para controle das atividades dos alunos. As autoras analisam o caso da disciplina ciências, em virtude de se tratar do exemplo de uma dessas tentativas de produzir uma integração pela via disciplinar. No artigo recorrem aos trabalhos de Ivor Goodson e Boaventura de Souza Santos, para argumentar que a disciplina escolar é diferente da disciplina científica.
Silvina Givirtz et al., no artigo intitulado "A politização do currículo de ciências nas escolas argentinas (1870-1950)", argumentam que os conteúdos de ensino em ciências foram selecionados e organizados em disciplinas de modo a buscar resolver conflitos ideológicos. No sentido de sustentar sua argumentação, apresentam dois estudos sobre as formas como determinados assuntos são introduzidos e posicionados no currículo, buscando identificar os componentes ideológicos dessa seleção e organização. As autoras tratam especificamente dos campos da astronomia e da cosmografia e das teorias da evolução. Concluem os autores que "existem relações complexas entre as ciências naturais, a instituição escolar e a política" (p. 9).
O artigo de Elizabeth Macedo, "Currículo e competência", analisa como a utilização da noção de competências vem respondendo, na teorização curricular, a novas formas de organização do saber e do trabalho na sociedade comtemporânea. A partir da análise dos documentos curriculares para a educação básica a autora identifica três inspirações principais: a tradição francesa de competência, o comportamentalismo americano das teorias de competência e as abordagens de conhecimento e mercado, que vêm dando destaque a saberes não-disciplinares. Compreendendo as políticas da elaboração curricular "como híbridos de muitas tradições em conflito", a autora defende a "necessidade de se buscar entender como se configuram os mecanismos de poder e quais as finalidades sociais de transição do currículo disciplinar para um currículo orientado por competências" (p. 9). A autora conclui o seu artigo defendendo que a centralidade na noção de competência, ainda que se utilizando variados elementos dos discursos educacionais construídos ao longo do último século e se apropriando de reivindicações do próprio campo, está alicerçada nas demandas postas à escola por um novo perfil do mercado produtivo (p. 141). O tema é instigante e a análise da autora é de extrema atualidade.
No artigo de Alice Casimiro Lopes, "Parâmetros curriculares para o ensino médio: quando a integração perde o seu potencial crítico", o foco volta-se para as atuais políticas curriculares para o ensino médio. A autora defende que o potencial crítico do discurso sobre currículo integrado encontra-se recontextualizado nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) a partir de processos de deslocalização de suas matrizes teóricas originais e de relocalização por hibridização, especialmente, com os discursos derivados das matrizes dos eficientistas sociais (o currículo por competências), associados a princípios integradores completamente distanciados de uma perspectiva crítica (p. 148).
No artigo de José Augusto Pacheco, "Área de projecto: uma componente curricular não-disciplinar", é analisada a recente reforma curricular portuguesa do ensino secundário, no que se refere às formas de organização curricular. O autor trata especificamente da área do projeto, que privilegia a interação entre escola e realidade e propõe a inversão da lógica curricular da transmissão para o questionamento. Esse artigo tem especial importância para nós, no Brasil, dado que os projetos têm sido propostos nas mais recentes reformas curriculares.
Finalizando a coletânea, o interessante artigo de Alfredo Veiga-Neto, "Espaço e currículo", focaliza algumas questões relativas à contribuição do currículo para a constituição do sujeito moderno. Na análise do autor, "é também pelo currículo que aprendemos a conferir sentidos e fazer uso do espaço e, de maneira obrigatoriamente imbricado, do tempo" (p. 11). Segue o autor defendendo a idéia de que "a integração e a transversalidade devem ser entendidas como invenções curriculares que representam novas configurações" (p. 11). O tema é abordado com originalidade.
Os estudos históricos sobre currículo transformam nosso foco de atenção colocando novos questionamentos e nos instigando a continuar a pesquisa, colaborando no desenvolvimento de outros estudos, na análise de propostas curriculares e na constante e necessária reflexão sobre as práticas escolares em diferentes níveis e contextos.
Entre os méritos da obra destacamos, em primeiro lugar, a utilização de uma linguagem clara, portanto de fácil compreensão, mesmo para os não iniciados no campo do estudo e da pesquisa sobre currículo. Em segundo lugar, o desenvolvimento de uma análise profunda utilizando autores consagrados no campo da história e da política. Dentre eles, destacamos a referência ao autor clássico na história do currículo, Ivor Goodson, que tem tentado, com sucesso, construir um arcabouço teórico para o estudo da história das disciplinas. Seu trabalho desvela o processo pelo qual determinadas áreas do conhecimento são transformadas em disciplinas escolares. Finalmente, destacamos a importante e necessária reflexão sobre temas da atualidade no contexto atual de reformas. Nosso país vive hoje em processo de implantação de várias reformas curriculares e elas têm sido apresentadas como elementos fundamentais para o alcance da melhoria da qualidade da educação dada pelos sistemas de ensino. De um modo geral elas têm sido concebidas tendo como base a visão de especialistas e de consultores internacionais, deixando em segundo plano a experiência dos seus reais implementadores – os professores dos diferentes níveis de ensino. As dificuldades de implantação e até mesmo de entendimento dessas novas propostas nos fazem analisar com maior cuidado o papel e a importância do currículo, seu discurso e sua prática em nossa realidade. Ao buscar subsídios teóricos para a análise desse quadro encontramos na coletânea de Lopes & Macedo temáticas como "parâmetros", "competências" e "projetos" analisadas nos artigos com base em autores de currículo vinculados aos paradigmas críticos e pós-críticos.
Pelas razões acima descritas, recomendo enfaticamente o livro por possibilitar um entendimento mais profundo dessas reformas, suas conseqüências na prática diária de nossas escolas e na busca de alternativas na superação dos impasses apresentados. O livro traz importantes subsídios para essa tarefa.
Por se tratar de obra de conteúdo crítico, apresenta-se como leitura indispensável para pesquisadores da área, professores da disciplina Currículo, estudantes de Pós-Graduação e de Graduação. Lembrando que a história do currículo é parte da história da educação, recomendamos também o livro para professores e pesquisadores do campo. Sua leitura será certamente enriquecedora para sua reflexões e análises.
* Resenha do livro Disciplinas e integração curricular: história e políticas, organizado por Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (Rio de Janeiro: DP&A, 2002).
** Professora do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
Dermeval Saviani Autores Associados: Campinas, 2007, 492p.
O livro, que recebeu o prêmio Jabuti em 2008, na categoria Educação, constitui mais uma contribuição do professor Dermeval Saviani ao exame crítico do pensamento pedagógico brasileiro e é um fruto do amadurecimento intelectual do autor. Não se trata de simples exposição ordenada de resultados de pesquisa. É, na verdade, resultante de uma vida de intensa elaboração da teoria da educação sob perspectiva crítica, de pesquisas e reflexões geradoras de novos conhecimentos difundidos em aulas, grandes conferências, muitos livros e artigos, na trajetória desse educador.
Oferecendo uma visão de conjunto das ideias pedagógicas na história da educação brasileira ao longo de cinco séculos, o texto discute suas implicações para a teoria e a prática educativas.
As ideias pedagógicas diferem substancialmente da tradicional história do pensamento dos grandes pedagogos e, também, das educacionais, que se referem amplamente à educação. As ideias pedagógicas decorrem da análise do fenômeno educativo, na busca de explicá-lo, ou derivam de certa concepção de homem, mundo ou sociedade sob a qual é interpretado o fenômeno educativo. Segundo o autor, elas são "as ideias educacionais, não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real da educação, orientando, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa" (p.6). Como exemplo, podem ser consideradas as ideias pedagógicas dos jesuítas no Brasil, especialmente no chamado Período Heroico; estas não se definem por simples derivação da concepção religiosa (católica) do mundo, sociedade e educação. Deram origem a práticas educativas que concretizaram o necessário ajuste entre as ideias educacionais e a realidade específica da colônia brasileira. São, portanto, as ideias pedagógicas ao longo da educação brasileira, o fulcro do estudo apresentado.
O livro resultou de um acurado processo de pesquisa conduzido pelo autor, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo propósito foi compreender a "evolução do pensamento pedagógico brasileiro a partir da identificação, classificação e periodização das principais concepções educacionais (p.1-2). A investigação tomou como materiais básicos documentos escritos – livros, artigos e textos oficiais –, trabalhando com fontes primárias, no caso, documentos nos quais se encontravam as ideias pedagógicas dos principais protagonistas da educação brasileira, e fontes secundárias, como documentação bibliográfica.
Foi obtido assim um conjunto de informações de grande vulto que, no livro propriamente dito, se evidencia em cada um dos capítulos e é registrado em um total de 351 fontes diretamente referidas e utilizadas na redação do texto. Além das obras mais conhecidas de história da educação brasileira, estão presentes, no decorrer dos capítulos, numerosas referências aos estudos feitos no Brasil nos últimos 20 anos por pesquisadores do campo históricoeducativo e publicados até 2006. São livros, artigos e outros materiais, inclusive os divulgados como teses, dissertações e até monografias de cursos de pós-graduação. Esses estudos de corte analítico, que incidiram sobre temas ou momentos específicos da educação brasileira, foram trabalhados pelo autor, e, somados a muitas outras leituras, possibilitaram reflexões e interpretações substantivas e sínteses amplas, com densidade explicativa, relativas às ideias pedagógicas existentes em longos períodos da história da educação brasileira ou em algumas de suas fases. Não foi relegado, contudo, o objetivo de oferecer aos leitores parte significativa das ricas informações obtidas pela pesquisa, que se referem a cada um dos momentos da educação brasileira; são apresentados assim, cuidadosos detalhamentos, tais como biografias dos protagonistas e datas completas de eventos marcantes, para melhor esclarecer o leitor.
Como outro resultado do trabalho de pesquisa, o autor construiu uma original periodização da evolução das ideias pedagógicas no Brasil. Buscou superar tanto as divisões no tempo, cuja base é a história político-administrativa, quanto as que se cingiram principalmente ao critério da determinação econômica, no esforço de compreender com maior rigor a história da educação brasileira. Assim, ao elaborar a periodização proposta, esclarece ter partido das principais concepções de educação, guiando-se pelo movimento real das ideias pedagógicas presentes no curso da história da educação.
A Pedagogia Tradicional, nas vertentes religiosa e leiga, a Pedagogia Nova, a Pedagogia Tecnicista e a concepção pedagógica produtivista, estudadas em suas características nos trabalhos anteriores do autor, são as categorias que delimitam quatro grandes períodos, dentro dos quais se identificam as diferentes ideias pedagógicas. Cada período é subdividido em duas ou três fases, de acordo com o movimento dessas ideias no seu interior. O início e o fim de cada período foram determinados por eventos fundamentais. Assim, por exemplo, o 2º período, que vai de 1759 a 1932, e em que ocorre a "coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da Pedagogia Tradicional", tem início com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, e o término marcado pela divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
Para demonstrar que o movimento das ideias pedagógicas foi o efetivo "divisor de águas", nada mais elucidativo que a afirmação de que "o princípio da periodização tem por base a hegemonia" (p. 20). Termos como configuração, desenvolvimento, predominância, monopólio, equilíbrio, coexistência, crise e articulação, com referência às pedagogias, passam a ser utilizados nos títulos dos períodos e capítulos. Essas denominações indicam o modo pelo qual as ideias pedagógicas se apresentam em determinado momento histórico, sob a forma de uma pedagogia, ou concepção, que nasce, firma-se, predominando ou coexistindo ao lado de outra, entrando em crise e sendo substituída ou não, pois pode ser reconfigurada sob novas bases, num movimento constante. São analisadas também as chamadas ideias e correntes não hegemônicas e as pedagogias contra-hegemônicas, de "esquerda", que, em alguns períodos e fases da educação brasileira, buscaram influenciar e ainda influenciam, de algum modo, a ação educativa, especialmente em anos recentes. Na estrutura geral do livro, a história das ideias pedagógicas no Brasil é apresentada com uma divisão em quatro períodos, com suas respectivas fases, em um total de 14 capítulos.
Na introdução, o professor-pesquisador, que coordena há algum tempo o, nacionalmente reconhecido, Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" – Histedbr –, procura dar esclarecimentos sobre a perspectiva teórico-metodológica adotada, cujo princípio é o "caráter concreto do conhecimento histórico-educacional" (p.3), que, para sua efetivação, exige ser complementado por outros. São ainda examinadas questões teóricas do campo da historiografia, entre elas, a tentação relativista e a sedução pela micro-história.
Na análise de cada período há um capítulo introdutório que indica sinteticamente as linhas básicas do momento histórico determinante das ideias pedagógicas correspondentes ao espaço de tempo analisado; a ele seguem-se os capítulos que correspondem às diferentes fases examinadas. Quanto ao conteúdo dos períodos e fases, dada a sua extensão e profundidade, somente uma leitura atenta de toda a obra poderá permitir a apreciação de sua qualidade e riqueza, inclusive da beleza e pertinência das ilustrações. Alguns aspectos serão destacados aqui, mais como um estímulo, um convite ao leitor.
No 1º período (1549-1759), em que ocorre o monopólio da vertente religiosa da Pedagogia Tradicional, são de se mencionar tanto as explicações históricas, no cap 1, relativas ao atraso do desenvolvimento capitalista em Portugal, quanto, no cap. 3, a apresentação da Ratio Studiorum jesuítica em sua complexidade.
No 2º período (1759-1932), ainda sob a Pedagogia Tradicional, mas incluindo a coexistência de suas vertentes religiosa e leiga, a propalada "desertificação" educacional após a expulsão dos jesuítas é confrontada no cap. 5, seja no que se refere à melhor compreensão dos novos propósitos político-educacionais em vista da "máquina mercante", seja no que diz respeito às reformas educacionais do despotismo esclarecido e às iniciativas como o Seminário de Olinda, no Brasil. No cap. 6, um alentado estudo das ideias pedagógicas e circunstâncias em que se disseminaram no Império e início do período republicano é feito mediante análise das propostas contidas na reforma, dos métodos de ensino utilizados para expandir a precária escolarização, bem como, da nova organização das escolas. As ideias pedagógicas republicanas são vistas em seus fundamentos positivistas e laicos.
O 3º período (1932-1969) é aquele em que a Pedagogia Tradicional convive com a Pedagogia Nova e depois cede lugar a ela. Esta última predomina com ampla margem nesse intervalo de tempo. Já no final dos anos 60, a Pedagogia Tecnicista começa a articular-se. Esse movimento é descrito em quatro capítulos (7, 8, 10 e 14), com detalhamento de informações sobre as lutas político-educacionais então travadas e seus protagonistas e com o exame das questões pedagógicas que surgem. Pode ser considerado o mais abrangente.
No 4º período (1969-2001), configurase a denominada concepção produtivista, mas também são examinadas as concepções pedagógicas, as contribuições e o papel histórico de Paulo Freire "referência de uma pedagogia progressista e de esquerda" (cap. 10) e, no cap. 12, os estudos crítico-reprodutivistas em seu papel de arma teórica nos anos 70 e no seu aporte para a compreensão dos limites da ação escolar. Também são mencionados explicitamente os trabalhos mais recentes e as lutas de seus principais representantes, Bourdieu, Baudelot e Establet, contra a invasão neoliberal, na defesa da educação pública.
Para o autor, no entanto, a concepção pedagógica produtivista parece ser de fato a hegemonia das ideias e práticas pedagógicas, desde os 69 até os nossos dias, sendo que, nos impactantes anos 90, teria havido um surto eficientista em que a racionalidade econômica prevaleceu sobre a pedagógica. Aqui se faz apenas um único comentário crítico. Enquanto as análises dos três primeiros períodos, mais distantes do movimento atual, permitem uma compreensão aprofundada dos movimentos "orgânicos e conjunturais", o mesmo não parece ocorrer em relação ao 4º período, especialmente nos cap. 13 e 14. Julga-se ainda necessário, no processo de análise da história das ideias pedagógicas, aguardar um tanto mais a decantação pelo tempo das "impurezas" que impedem uma percepção mais nítida do real movimento de explicitação e prevalência de ideias. Quem sabe as ideias pedagógicas contidas nas pedagogias contra-hegemônicas possam ser mais reconhecidas, no seu alcance teórico e nas realizações práticas durante os anos 80 e posteriores, e nas esperanças depositadas no início do séc. XXI. Para isso, não só o tempo, mas também estudos, reflexões e pesquisas são imprescindíveis. De modo semelhante tornase uma exigência afinar a compreensão crítica quanto aos fundamentos e influências na prática pedagógica do chamado neoprodutivismo e suas variantes: neo-escalonovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (cap.14).
Cabe destacar ainda, no livro, a reiterada afirmativa do autor de que sua imensa tarefa de pesquisa e síntese das ideias pedagógicas no Brasil seria vã, caso os conhecimentos obtidos resultassem apenas em um relatório técnico, para especialistas, e não chegassem até as salas de aula pelos professores e diretores, e não conseguissem integrar programas escolares. Sendo assim, a obra persegue o propósito de trazer mais coerência e consistência à ação educativa, como, no dizer do autor, "um primeiro esforço no sentido de pôr ao alcance dos professores um recurso que lhes permita abordar a educação brasileira em seu conjunto, desde as origens até nossos dias" (p.18).
Pelas razões apontadas e considerando de plena justiça o prêmio recebido pelo autor, é que se pode recomendar aos educadores a leitura de mais este livro do dr. Demerval Saviani, professor e orientador de grande número de professores e pesquisadores brasileiros que estão hoje produzindo teórica e praticamente a educação no Brasil.
DISCIPLINAS E INTEGRAÇÃO CURRICULAR: HISTÓRIA E POLÍTICAS*
Maria Inês Marcondes**
A coletânea de textos organizada pelas professoras Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo reúne artigos elaborados por autores brasileiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Inclui também a contribuição latino-americana representada pela Argentina, Universidade de Buenos Aires, e européia, representada pelas contribuições portuguesa da Universidade do Minho e francesa do Centro de Pesquisas Históricas (CNRS) e da Escola Superior de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris).
As organizadoras são reconhecidas pesquisadoras do campo do currículo e professoras em cursos de Graduação e Pós-Graduação na UFRJ e na UERJ, respectivamente. São também membros do Grupo de Trabalho de Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANDEP).
Trata-se de uma coletânea composta por 8 artigos que têm em comum o foco no "conhecimento escolar" e sua organização nas políticas educacionais e no cotidiano das salas de aula. A intenção da obra é problematizar a relação entre integração curricular e disciplinas escolares com base na história e na política.
Os autores dos textos discutem o conhecimento escolar organizado em disciplinas (vistas ainda como indispensáveis instrumentos de sistematização de saberes e habilidades), mas não se restringindo mais aos limites disciplinares. Analisam o discurso da integração curricular que está sendo proposto e justificado por mudanças dos processos de trabalho e de organização do conhecimento no mundo globalizado. Destacam que a possível identificação nas propostas curriculares de expressões comuns àquelas utilizadas em outros momentos históricos do passado não é garantia de que os mesmos sentidos e significados se reproduzam, nem que estejam sendo perseguidas as mesmas finalidades educacionais.
A partir disso, faz-se urgente a interpretação dos discursos das atuais propostas curriculares oficiais, levando em conta a especificidade de cada um deles, assim como sua contextualização política, econômica, social e cultural. Fazer essa interpretação é uma das tarefas a que os autores dos artigos se propõem.
Trabalhar com a História do Currículo é reconstruir a história a partir de múltiplas versões, analisar documentos, estabelecendo relações e correlações no sentido de reconstruir uma rede de significados. Ao fazer essa reconstrução os autores enfrentam a tensão entre aspectos macro-sociais e as dimensões micro-referentes instituições e as salas de aula onde o currículo se materializa. Se reduzirmos a análise a um desses aspectos, corremos o risco de minimizar a complexidade do fazer curricular, defendem os autores. Reler cada um dos documentos para reconstruir o cotidiano curricular não é tarefa fácil, pois ele se apresenta complexo, difuso, difícil de captar e desvelar o que está encoberto.
A História do Currículo possibilita acompanhar a natureza das mudanças curriculares, compreendendo a gênese e o desenvolvimento de determinadas categorias que hoje estão presentes, muitas das vezes, com outros significados. Analisar políticas curriculares, tendo como pano de fundo a história do currículo, é um dos objetivos desempenhados com sucesso pela coletânea apresentada.
Com base em nossa leitura e na introdução da obra feita pelas suas organizadoras, Lopes & Macedo, fazemos um breve resumo dos textos apresentados:
O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho, "Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos", defende novas perspectivas para a pesquisa sobre a escola em História da Educação. O fenômeno da escolarização é estudado pelo autor: de uma sociedade sem escolas no início do século XIX ao início do XXI com a quase totalidade de nossas crianças na escola. Tempos, espaços, sujeitos, conhecimentos e práticas escolares são focalizados como elementos-chave dessa análise. Ao analisar a cultura escolar o autor mostra o surgimento no currículo brasileiro da seriação e da organização disciplinar e quais as suas conseqüências para a escolarização e, dessa, para a cultura social mais ampla. De acordo com o autor, "A escola vai-se constituindo, assim, não apenas no locus privilegiado da cultura e da formação humana, mas também como um grande mercado de trabalho e de consumo de inúmeros produtos da cada vez mais complexa e poderosa indústria editorial, entre outras" (p. 35).
O artigo de Dominique Juliá, "Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação", por sua vez, discute a pesquisa em história das disciplinas escolares, argumentando que esse campo de estudos deve levar em conta os objetivos associados não apenas às referidas disciplinas, mas também às práticas reais de ensino e à apropriação dos conteúdos por parte dos alunos. O autor apresenta e discute os cuidados metodológicos que os historiadores do currículo devem ter ao substituir as análises macroscópicas pelo estudo dos funcionamentos internos específicos de cada escola. Essas duas instâncias vêm se complementar, oferecendo ao pesquisador um quadro de análise mais completo e abrangente. O autor conclui dizendo que
resulta essencial relembrar que toda a história das disciplinas escolares deve, em um mesmo movimento, considerar as finalidades óbvias ou implícitas buscadas, os conteúdos de ensino e a apropriação realizada pelos alunos, tal como pode ser medida por meio de trabalhos e exercícios. Há uma interação constante entre esses três pólos que concorrem na constituição de uma disciplina e estaríamos incorrendo diretamente em graves erros se quiséssemos ignorar ou negligenciar qualquer um deles. (P. 51)
Em seu artigo Dominique Juliá abarca esses três pólos.
As organizadoras da obra, Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo, são também autoras do artigo "A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências". Nele, levantam a hipótese de que, mesmo em currículos transversais (em que a matriz do conhecimento não é disciplinar), a força dos processos de administração curricular acabaria acarretando a organização de disciplinas com finalidade de controle do trabalho docente e/ou para controle das atividades dos alunos. As autoras analisam o caso da disciplina ciências, em virtude de se tratar do exemplo de uma dessas tentativas de produzir uma integração pela via disciplinar. No artigo recorrem aos trabalhos de Ivor Goodson e Boaventura de Souza Santos, para argumentar que a disciplina escolar é diferente da disciplina científica.
Silvina Givirtz et al., no artigo intitulado "A politização do currículo de ciências nas escolas argentinas (1870-1950)", argumentam que os conteúdos de ensino em ciências foram selecionados e organizados em disciplinas de modo a buscar resolver conflitos ideológicos. No sentido de sustentar sua argumentação, apresentam dois estudos sobre as formas como determinados assuntos são introduzidos e posicionados no currículo, buscando identificar os componentes ideológicos dessa seleção e organização. As autoras tratam especificamente dos campos da astronomia e da cosmografia e das teorias da evolução. Concluem os autores que "existem relações complexas entre as ciências naturais, a instituição escolar e a política" (p. 9).
O artigo de Elizabeth Macedo, "Currículo e competência", analisa como a utilização da noção de competências vem respondendo, na teorização curricular, a novas formas de organização do saber e do trabalho na sociedade comtemporânea. A partir da análise dos documentos curriculares para a educação básica a autora identifica três inspirações principais: a tradição francesa de competência, o comportamentalismo americano das teorias de competência e as abordagens de conhecimento e mercado, que vêm dando destaque a saberes não-disciplinares. Compreendendo as políticas da elaboração curricular "como híbridos de muitas tradições em conflito", a autora defende a "necessidade de se buscar entender como se configuram os mecanismos de poder e quais as finalidades sociais de transição do currículo disciplinar para um currículo orientado por competências" (p. 9). A autora conclui o seu artigo defendendo que a centralidade na noção de competência, ainda que se utilizando variados elementos dos discursos educacionais construídos ao longo do último século e se apropriando de reivindicações do próprio campo, está alicerçada nas demandas postas à escola por um novo perfil do mercado produtivo (p. 141). O tema é instigante e a análise da autora é de extrema atualidade.
No artigo de Alice Casimiro Lopes, "Parâmetros curriculares para o ensino médio: quando a integração perde o seu potencial crítico", o foco volta-se para as atuais políticas curriculares para o ensino médio. A autora defende que o potencial crítico do discurso sobre currículo integrado encontra-se recontextualizado nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) a partir de processos de deslocalização de suas matrizes teóricas originais e de relocalização por hibridização, especialmente, com os discursos derivados das matrizes dos eficientistas sociais (o currículo por competências), associados a princípios integradores completamente distanciados de uma perspectiva crítica (p. 148).
No artigo de José Augusto Pacheco, "Área de projecto: uma componente curricular não-disciplinar", é analisada a recente reforma curricular portuguesa do ensino secundário, no que se refere às formas de organização curricular. O autor trata especificamente da área do projeto, que privilegia a interação entre escola e realidade e propõe a inversão da lógica curricular da transmissão para o questionamento. Esse artigo tem especial importância para nós, no Brasil, dado que os projetos têm sido propostos nas mais recentes reformas curriculares.
Finalizando a coletânea, o interessante artigo de Alfredo Veiga-Neto, "Espaço e currículo", focaliza algumas questões relativas à contribuição do currículo para a constituição do sujeito moderno. Na análise do autor, "é também pelo currículo que aprendemos a conferir sentidos e fazer uso do espaço e, de maneira obrigatoriamente imbricado, do tempo" (p. 11). Segue o autor defendendo a idéia de que "a integração e a transversalidade devem ser entendidas como invenções curriculares que representam novas configurações" (p. 11). O tema é abordado com originalidade.
Os estudos históricos sobre currículo transformam nosso foco de atenção colocando novos questionamentos e nos instigando a continuar a pesquisa, colaborando no desenvolvimento de outros estudos, na análise de propostas curriculares e na constante e necessária reflexão sobre as práticas escolares em diferentes níveis e contextos.
Entre os méritos da obra destacamos, em primeiro lugar, a utilização de uma linguagem clara, portanto de fácil compreensão, mesmo para os não iniciados no campo do estudo e da pesquisa sobre currículo. Em segundo lugar, o desenvolvimento de uma análise profunda utilizando autores consagrados no campo da história e da política. Dentre eles, destacamos a referência ao autor clássico na história do currículo, Ivor Goodson, que tem tentado, com sucesso, construir um arcabouço teórico para o estudo da história das disciplinas. Seu trabalho desvela o processo pelo qual determinadas áreas do conhecimento são transformadas em disciplinas escolares. Finalmente, destacamos a importante e necessária reflexão sobre temas da atualidade no contexto atual de reformas. Nosso país vive hoje em processo de implantação de várias reformas curriculares e elas têm sido apresentadas como elementos fundamentais para o alcance da melhoria da qualidade da educação dada pelos sistemas de ensino. De um modo geral elas têm sido concebidas tendo como base a visão de especialistas e de consultores internacionais, deixando em segundo plano a experiência dos seus reais implementadores – os professores dos diferentes níveis de ensino. As dificuldades de implantação e até mesmo de entendimento dessas novas propostas nos fazem analisar com maior cuidado o papel e a importância do currículo, seu discurso e sua prática em nossa realidade. Ao buscar subsídios teóricos para a análise desse quadro encontramos na coletânea de Lopes & Macedo temáticas como "parâmetros", "competências" e "projetos" analisadas nos artigos com base em autores de currículo vinculados aos paradigmas críticos e pós-críticos.
Pelas razões acima descritas, recomendo enfaticamente o livro por possibilitar um entendimento mais profundo dessas reformas, suas conseqüências na prática diária de nossas escolas e na busca de alternativas na superação dos impasses apresentados. O livro traz importantes subsídios para essa tarefa.
Por se tratar de obra de conteúdo crítico, apresenta-se como leitura indispensável para pesquisadores da área, professores da disciplina Currículo, estudantes de Pós-Graduação e de Graduação. Lembrando que a história do currículo é parte da história da educação, recomendamos também o livro para professores e pesquisadores do campo. Sua leitura será certamente enriquecedora para sua reflexões e análises.
* Resenha do livro Disciplinas e integração curricular: história e políticas, organizado por Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (Rio de Janeiro: DP&A, 2002).
** Professora do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
Dermeval Saviani Autores Associados: Campinas, 2007, 492p.
O livro, que recebeu o prêmio Jabuti em 2008, na categoria Educação, constitui mais uma contribuição do professor Dermeval Saviani ao exame crítico do pensamento pedagógico brasileiro e é um fruto do amadurecimento intelectual do autor. Não se trata de simples exposição ordenada de resultados de pesquisa. É, na verdade, resultante de uma vida de intensa elaboração da teoria da educação sob perspectiva crítica, de pesquisas e reflexões geradoras de novos conhecimentos difundidos em aulas, grandes conferências, muitos livros e artigos, na trajetória desse educador.
Oferecendo uma visão de conjunto das ideias pedagógicas na história da educação brasileira ao longo de cinco séculos, o texto discute suas implicações para a teoria e a prática educativas.
As ideias pedagógicas diferem substancialmente da tradicional história do pensamento dos grandes pedagogos e, também, das educacionais, que se referem amplamente à educação. As ideias pedagógicas decorrem da análise do fenômeno educativo, na busca de explicá-lo, ou derivam de certa concepção de homem, mundo ou sociedade sob a qual é interpretado o fenômeno educativo. Segundo o autor, elas são "as ideias educacionais, não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real da educação, orientando, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa" (p.6). Como exemplo, podem ser consideradas as ideias pedagógicas dos jesuítas no Brasil, especialmente no chamado Período Heroico; estas não se definem por simples derivação da concepção religiosa (católica) do mundo, sociedade e educação. Deram origem a práticas educativas que concretizaram o necessário ajuste entre as ideias educacionais e a realidade específica da colônia brasileira. São, portanto, as ideias pedagógicas ao longo da educação brasileira, o fulcro do estudo apresentado.
O livro resultou de um acurado processo de pesquisa conduzido pelo autor, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo propósito foi compreender a "evolução do pensamento pedagógico brasileiro a partir da identificação, classificação e periodização das principais concepções educacionais (p.1-2). A investigação tomou como materiais básicos documentos escritos – livros, artigos e textos oficiais –, trabalhando com fontes primárias, no caso, documentos nos quais se encontravam as ideias pedagógicas dos principais protagonistas da educação brasileira, e fontes secundárias, como documentação bibliográfica.
Foi obtido assim um conjunto de informações de grande vulto que, no livro propriamente dito, se evidencia em cada um dos capítulos e é registrado em um total de 351 fontes diretamente referidas e utilizadas na redação do texto. Além das obras mais conhecidas de história da educação brasileira, estão presentes, no decorrer dos capítulos, numerosas referências aos estudos feitos no Brasil nos últimos 20 anos por pesquisadores do campo históricoeducativo e publicados até 2006. São livros, artigos e outros materiais, inclusive os divulgados como teses, dissertações e até monografias de cursos de pós-graduação. Esses estudos de corte analítico, que incidiram sobre temas ou momentos específicos da educação brasileira, foram trabalhados pelo autor, e, somados a muitas outras leituras, possibilitaram reflexões e interpretações substantivas e sínteses amplas, com densidade explicativa, relativas às ideias pedagógicas existentes em longos períodos da história da educação brasileira ou em algumas de suas fases. Não foi relegado, contudo, o objetivo de oferecer aos leitores parte significativa das ricas informações obtidas pela pesquisa, que se referem a cada um dos momentos da educação brasileira; são apresentados assim, cuidadosos detalhamentos, tais como biografias dos protagonistas e datas completas de eventos marcantes, para melhor esclarecer o leitor.
Como outro resultado do trabalho de pesquisa, o autor construiu uma original periodização da evolução das ideias pedagógicas no Brasil. Buscou superar tanto as divisões no tempo, cuja base é a história político-administrativa, quanto as que se cingiram principalmente ao critério da determinação econômica, no esforço de compreender com maior rigor a história da educação brasileira. Assim, ao elaborar a periodização proposta, esclarece ter partido das principais concepções de educação, guiando-se pelo movimento real das ideias pedagógicas presentes no curso da história da educação.
A Pedagogia Tradicional, nas vertentes religiosa e leiga, a Pedagogia Nova, a Pedagogia Tecnicista e a concepção pedagógica produtivista, estudadas em suas características nos trabalhos anteriores do autor, são as categorias que delimitam quatro grandes períodos, dentro dos quais se identificam as diferentes ideias pedagógicas. Cada período é subdividido em duas ou três fases, de acordo com o movimento dessas ideias no seu interior. O início e o fim de cada período foram determinados por eventos fundamentais. Assim, por exemplo, o 2º período, que vai de 1759 a 1932, e em que ocorre a "coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da Pedagogia Tradicional", tem início com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, e o término marcado pela divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
Para demonstrar que o movimento das ideias pedagógicas foi o efetivo "divisor de águas", nada mais elucidativo que a afirmação de que "o princípio da periodização tem por base a hegemonia" (p. 20). Termos como configuração, desenvolvimento, predominância, monopólio, equilíbrio, coexistência, crise e articulação, com referência às pedagogias, passam a ser utilizados nos títulos dos períodos e capítulos. Essas denominações indicam o modo pelo qual as ideias pedagógicas se apresentam em determinado momento histórico, sob a forma de uma pedagogia, ou concepção, que nasce, firma-se, predominando ou coexistindo ao lado de outra, entrando em crise e sendo substituída ou não, pois pode ser reconfigurada sob novas bases, num movimento constante. São analisadas também as chamadas ideias e correntes não hegemônicas e as pedagogias contra-hegemônicas, de "esquerda", que, em alguns períodos e fases da educação brasileira, buscaram influenciar e ainda influenciam, de algum modo, a ação educativa, especialmente em anos recentes. Na estrutura geral do livro, a história das ideias pedagógicas no Brasil é apresentada com uma divisão em quatro períodos, com suas respectivas fases, em um total de 14 capítulos.
Na introdução, o professor-pesquisador, que coordena há algum tempo o, nacionalmente reconhecido, Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" – Histedbr –, procura dar esclarecimentos sobre a perspectiva teórico-metodológica adotada, cujo princípio é o "caráter concreto do conhecimento histórico-educacional" (p.3), que, para sua efetivação, exige ser complementado por outros. São ainda examinadas questões teóricas do campo da historiografia, entre elas, a tentação relativista e a sedução pela micro-história.
Na análise de cada período há um capítulo introdutório que indica sinteticamente as linhas básicas do momento histórico determinante das ideias pedagógicas correspondentes ao espaço de tempo analisado; a ele seguem-se os capítulos que correspondem às diferentes fases examinadas. Quanto ao conteúdo dos períodos e fases, dada a sua extensão e profundidade, somente uma leitura atenta de toda a obra poderá permitir a apreciação de sua qualidade e riqueza, inclusive da beleza e pertinência das ilustrações. Alguns aspectos serão destacados aqui, mais como um estímulo, um convite ao leitor.
No 1º período (1549-1759), em que ocorre o monopólio da vertente religiosa da Pedagogia Tradicional, são de se mencionar tanto as explicações históricas, no cap 1, relativas ao atraso do desenvolvimento capitalista em Portugal, quanto, no cap. 3, a apresentação da Ratio Studiorum jesuítica em sua complexidade.
No 2º período (1759-1932), ainda sob a Pedagogia Tradicional, mas incluindo a coexistência de suas vertentes religiosa e leiga, a propalada "desertificação" educacional após a expulsão dos jesuítas é confrontada no cap. 5, seja no que se refere à melhor compreensão dos novos propósitos político-educacionais em vista da "máquina mercante", seja no que diz respeito às reformas educacionais do despotismo esclarecido e às iniciativas como o Seminário de Olinda, no Brasil. No cap. 6, um alentado estudo das ideias pedagógicas e circunstâncias em que se disseminaram no Império e início do período republicano é feito mediante análise das propostas contidas na reforma, dos métodos de ensino utilizados para expandir a precária escolarização, bem como, da nova organização das escolas. As ideias pedagógicas republicanas são vistas em seus fundamentos positivistas e laicos.
O 3º período (1932-1969) é aquele em que a Pedagogia Tradicional convive com a Pedagogia Nova e depois cede lugar a ela. Esta última predomina com ampla margem nesse intervalo de tempo. Já no final dos anos 60, a Pedagogia Tecnicista começa a articular-se. Esse movimento é descrito em quatro capítulos (7, 8, 10 e 14), com detalhamento de informações sobre as lutas político-educacionais então travadas e seus protagonistas e com o exame das questões pedagógicas que surgem. Pode ser considerado o mais abrangente.
No 4º período (1969-2001), configurase a denominada concepção produtivista, mas também são examinadas as concepções pedagógicas, as contribuições e o papel histórico de Paulo Freire "referência de uma pedagogia progressista e de esquerda" (cap. 10) e, no cap. 12, os estudos crítico-reprodutivistas em seu papel de arma teórica nos anos 70 e no seu aporte para a compreensão dos limites da ação escolar. Também são mencionados explicitamente os trabalhos mais recentes e as lutas de seus principais representantes, Bourdieu, Baudelot e Establet, contra a invasão neoliberal, na defesa da educação pública.
Para o autor, no entanto, a concepção pedagógica produtivista parece ser de fato a hegemonia das ideias e práticas pedagógicas, desde os 69 até os nossos dias, sendo que, nos impactantes anos 90, teria havido um surto eficientista em que a racionalidade econômica prevaleceu sobre a pedagógica. Aqui se faz apenas um único comentário crítico. Enquanto as análises dos três primeiros períodos, mais distantes do movimento atual, permitem uma compreensão aprofundada dos movimentos "orgânicos e conjunturais", o mesmo não parece ocorrer em relação ao 4º período, especialmente nos cap. 13 e 14. Julga-se ainda necessário, no processo de análise da história das ideias pedagógicas, aguardar um tanto mais a decantação pelo tempo das "impurezas" que impedem uma percepção mais nítida do real movimento de explicitação e prevalência de ideias. Quem sabe as ideias pedagógicas contidas nas pedagogias contra-hegemônicas possam ser mais reconhecidas, no seu alcance teórico e nas realizações práticas durante os anos 80 e posteriores, e nas esperanças depositadas no início do séc. XXI. Para isso, não só o tempo, mas também estudos, reflexões e pesquisas são imprescindíveis. De modo semelhante tornase uma exigência afinar a compreensão crítica quanto aos fundamentos e influências na prática pedagógica do chamado neoprodutivismo e suas variantes: neo-escalonovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (cap.14).
Cabe destacar ainda, no livro, a reiterada afirmativa do autor de que sua imensa tarefa de pesquisa e síntese das ideias pedagógicas no Brasil seria vã, caso os conhecimentos obtidos resultassem apenas em um relatório técnico, para especialistas, e não chegassem até as salas de aula pelos professores e diretores, e não conseguissem integrar programas escolares. Sendo assim, a obra persegue o propósito de trazer mais coerência e consistência à ação educativa, como, no dizer do autor, "um primeiro esforço no sentido de pôr ao alcance dos professores um recurso que lhes permita abordar a educação brasileira em seu conjunto, desde as origens até nossos dias" (p.18).
Pelas razões apontadas e considerando de plena justiça o prêmio recebido pelo autor, é que se pode recomendar aos educadores a leitura de mais este livro do dr. Demerval Saviani, professor e orientador de grande número de professores e pesquisadores brasileiros que estão hoje produzindo teórica e praticamente a educação no Brasil.
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